segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O homem de Cristo em busca da salvação - Deus, o centro. parte 1.

“ (...) e a multidão estava lá ... empenhada em se reunir para adorar e
                               beijar as santas relíquias (...) ninguém em meio a intensa densidade de
                                               milhares de pessoas podia, sequer,  mover um pé.”

Suger, abade da Catedral St. Denis, 1135. 1

A antiguidade clássica era tida como o período em que o homem atingira o apogeu de seu poder criador e que terminara abruptamente devido aos bárbaros, que tinham destruído o império romano. Pouco se realizara em termos de inovações, neste intervalo de quase mil anos. O homem medieval não imaginava pertencer a uma era distinta da antiguidade clássica; o passado para ele, consistia simplesmente em “a.C.” e “d.C.” e a história, sob esse ponto de vista, fazia-se no céu e não na terra. 2  A imprecisão na medida do tempo e mais ainda, a fragilidade de uma concepção quantitativa do tempo, impediram a constituição de um conceito de progresso propriamente humano, muito embora progressos tecnológicos tivessem ocorrido: óculos de leitura, o arado e formas do uso da terra, a roda de fiar, os ofícios de ferreiro em geral.
A popularização do relógio mecânico iria acompanhar a transformação da concepção do mundo. Com ele a hora de 60 minutos substituiria o dia como medida básica de tempo. No entanto a Igreja, com suas prescrições e proscrições sobre o que devia ou não podia ser feito neste ou naquele dia, nesta ou naquela hora, fazia com que o tempo continuasse desigual em qualidade. As horas canônicas continuavam a seguir o ciclo do dia; do nascer ao por do sol. Mesmo assim apesar de o tempo ser impreciso, não deixava de haver uma história.
O homem medieval vivia imerso numa história litúrgica. Cristo é histórico. Ele nasceu em determinado dia durante o reino de César Augusto quando Herodes era o tetrarca da Galiléia. O próprio Sagrado criava uma consciência histórica, mas tratava-se de uma história de redenção que culminaria segundo os planos da Igreja, com uma humanidade, e não um povo específico, regenerada. O mundo todo partilharia uma mesma história; mas para dela participar era preciso ser cristão e por isso, a evangelização dos gentios e mesmo a salvação dos selvagens era apresentada como parte da vontade do Divino.

Icone de Jesus Cristo em igreja do séc. XI.
Fonte: joiasesimbolosmedievais.blogspot.com
No final da Idade Média, as grandes navegações proporcionaram ao homem europeu um dilema. O encontro com terras habitadas por povos até então desconhecidos por eles, obrigou-os a compreender os nativos do Novo Mundo, pois para o processo de colonização essa mão-de-obra nativa era fundamental. No entanto esse encontro teve sua conseqüência no campo filosófico, pois o homem passou a questionar os limites da humanidade: “Eram os nativos humanos ou não?”. Da resposta surgiu o termo “selvagem” para descrever de forma genérica e incompleta uma diferente condição de vida: a dos povos habitantes das novas terras, com referências culturais desconhecidas.
Quando o selvagem apareceu na vida do homem europeu, não existia a separação entre o Estado e a Igreja. A concepção teocêntrica predominava na filosofia, e o ser humano cuja condição era definida pela fé, acreditava que era portador de uma alma concedida a si como dádiva divina. Assim as discussões sobre a humanidade ou animalidade do selvagem se desenvolveram em bases teológicas: “O selvagem possui alma ou não? Foi criado por Deus como homem ou como animal?” Ao perguntar-se que homem era selvagem, o ocidental questionava sobre si próprio. Porém a força dos dogmas católicos desfazia qualquer tipo de questionamento oposto ao da Igreja, e tudo que estivesse fora do quadro mental e teológico do período só poderia ser considerado monstruoso ou herético.
O fantástico predominava sobre  o factual. O pensamento medieval era composto de fragmentos do conhecimento antigo repetidos e copiados de um autor a outro, sendo o plágio uma forma respeitável de erudição, parte de uma atitude segundo a qual inexiste conhecimento novo: o pensamento medieval não privilegiava a pesquisa independente.  Os dogmas religiosos limitavam a imaginação criativa. Conhecimentos novos eram possíveis, pois nunca deixaram de haver viagens de comerciantes, aventureiros e missionários para além do mundo europeu-cristão. Contudo parecia haver uma recusa à aceitação dos fatos geográficos, resultando uma ignorância etnográfica.          
O mundo era dividido apenas no âmbito religioso em duas categorias: idólatras ou pagãos e cristãos. O primeiro rótulo agrupava os egípcios, cretenses, mouros, romanos antigos e outros povos cujo culto aos mortos os levou à criação de deuses. Os integrantes daqueles grupos haviam se rebelado contra o Deus do cristianismo. Para a comunidade cristã, tempos prósperos impulsionados pela mão divina, e para os outros restaria apenas a degeneração por obra de Satã. 3
O selvagem passou a ser um assunto teológico, econômico, político, e também objeto de investigação filosófica. Passou a habitar definitivamente o imaginário europeu, porque tal encontro foi um marco no pensamento medieval. 4 Paulatinamente o selvagem, que a princípio era apontado como desprovido de religião, foi transformado em inimigo do cristianismo por aderir a uma religião falsa; um obstáculo à realização da vontade divina. O homem selvagem se aproximou do bárbaro por não possuir linguagem, no entanto, possuía uma linguagem de sinais e grunhidos semelhantes aos dos animais, uma linguagem que podia expressar sentimentos, mas não idéias. 5 “Os escritores medievais...preferiram evitar explicações teológicas para a existência dos homens selvagens... os homens selvagens, em sua lamentável condição, não seriam uma criação de Deus, mas criaturas que teriam caído nessa condição bestial devido a loucura, por terem crescido entre animais, pela solidão, ou pelos sofrimentos por que passaram.” , dizia o antropólogo Roger Bartra 6.
Durante muito tempo a colonização continuou enviando administradores e missionários às novas terras, praticando uma política de “civilização” dos nativos através da catequese, a fim de “humanizá-los” e submetê-los aos interesses coloniais e às formas de vida, fé e trabalho ocidentais, para uso de sua mão-de-obra. Enquanto isso, na Europa surgia o Renascimento como movimento filosófico e artístico, reintroduzindo a perspectiva antropocêntrica dos ideais gregos, abandonados durante o período medieval. Iniciava-se o primeiro período na história em que o homem passava a ser consciente da sua própria existência, inventando um termo para se autodesignar.

Notas:  
1. TOMAN, Rolf. O Românico – arquitetura, escultura, pintura.
Lisboa, Portugal: Konemann Verlagsgesellschaft mbH, editora portuguesa, 2000 p.11.

2. JANSON, H.W. Iniciação a história da arte. SP. Editora Martins Fontes. 1996. p.168.

3. PASSADOR, Luiz Henrique. Antropos e Psique, o outro lado da subjetividade.
SP. Editora Olho d’Água. 2002. p.32.

5. WOORTMANN, Klaas. Selvagem e o novo mundo:
ameríndios, humanismo e escatologia. Brasília. UNB. 2004.  p. 18

6. Ibid, p.26.

7. Ibid. p.25. apud  BARTRA, Roger. “El salvaje artificial”. Espanha. 1997.

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