sexta-feira, 22 de abril de 2016

Santiago de Compostela: antecedentes históricos das peregrinações

“ Pois nos nossos dias nos foi revelado o prezado tesouro do bem aventurado Apóstolo, 
ou seja, o seu santíssimo corpo. Ao conhecê-lo, com grande devoção e espírito de súplica, 
apressei-me a ir adorar e venerar tão precioso tesouro, 
acompanhado da minha corte, e dendemos-lhe culto no meio de lágrimas e orações 
como Patrono e Senhor de Espanha, e pela nossa própria vontade, 
outorgámos-lhe o pequeno obséquio antes referido, 
e mandamos construir uma igreja em sua honra. ”  

Rei Afonso II, o Casto, 4 de setembro de 834, justificando a construção da Capela a Santiago. 1 .

A concha símbolo do caminho de Santiago de Compostela pode ser identificada em todo o piso da cidade.
Foto: arquivo pessoal 
Internacionalmente famosa como um dos destinos cristãos mais importantes do mundo, a cidade de Santiago de Compostela a noroeste da Espanha, possui popularidade possivelmente só superada por Roma e Jerusalém no que diz respeito as peregrinações. Ligado a esta tradição, que remonta à fundação da cidade no século IX, destaca-se a catedral de Santiago, que abriga o túmulo de Santiago Maior, um dos apóstolos de Jesus Cristo. A visita a esse túmulo marca o fim da peregrinação, cujos percursos, os chamados Caminhos de Santiago ou Via Láctea, se estendem por toda a Europa Ocidental ao longo de milhares de quilômetros.


Angulos da cidade de Santiago, com sua arquitetura medieval.
Fotos: arquivo pessoal.
As origens do culto a São Tiago na Galícia se perdem na história. Contudo, em finais do século VII, textos revelam a divulgação no noroeste da Península Ibérica, de uma lenda que contava que o corpo do apóstolo Tiago teria sido enterrado naquelas terras após o período de evangelização. A evangelização da Hispânia por Santiago é mencionada pelo arcebispo Isidoro de Sevilha (560-636)  no seu tratado “De Ortu et Obitu Patrum” e pelo bispo inglês Adelmo de Malmesbury (639-709). Segundo esta lenda, na primeira década do século IX (especificamente no ano de 813, e oito séculos após a morte do apóstolo Santiago), um eremita chamado Pelágio (ou Paio) juntamente com outros fiéis, viu umas luzes estranhas perto do lugar conhecido como Solovio, num bosque chamado Libredón, e comunicou a ocorrência a Teodomiro, na ocasião bispo de Iria Flávia. Depois de três dias de jejum, o bispo e seu séqüito deslocaram-se ao local e descobriram entre o matagal um monumento construído em placas de mármore, constituído por um pequeno edifício abobadado em ruínas. Numa câmara do interior havia um túmulo em mármore e um altar, pelo que não tiveram duvida alguma de que se tratava do sepulcro do apóstolo e dos seus dois discípulos Atanásio e Teodoro.

Rei Alfonso II, em iluminura do século X.
Fonte: www.google.com
O bispo comunicou o achado ao rei das Astúrias e Galícia Alfonso II, o Casto, que se deslocou imediatamente com sua corte ao local, outorgando ao bispo as terras vizinhas ao sepulcro e as suas respectivas rendas. Dada a importância religiosa e política do achado, o rei Afonso II mandou construir uma igreja pequena e simples sobre o cemitério e “supra corpus apostoli” (“por cima do corpo do apóstolo”), junto a um batistério e outra igreja dedicada ao Salvador. Para tal foram derrubadas as colunas existentes e construída uma parede rodeando a arca de mármore e formando uma nave de planta retangular, com uma pequena ábside, estando todo o conjunto coberto com um teto em madeira. 

Escultura do rei Alfonso II, localizada na cidade de Santiago de Compostela
Fonte: arquivo pessoal.
  Desse primeiro templo pouco se conserva atualmente. Um pouco depois, durante o reinado de Afonso III, o Grande, devido ao número crescente de peregrinos e às pequenas dimensões da igreja, decidiu-se construir um novo templo, de maiores dimensões e com melhor construção do que o existente. A nova igreja foi construída segundo os princípios pré-românicos, com três naves e uma abside quadrangular, que integrou a igreja anterior no presbitério. As sepulturas de Santiago e dos seus discípulos não foram mexidas. O teto era ainda de madeira, com duas águas. Desse período, ainda existem restos da parte superior de três janelas laterais, em arco de ferradura.

No verão de 997, Santiago de Compostela foi atacada por Almançor, o governante do Califado de Córdoba. Prevendo esse ataque, o bispo Pedro de Mezonzo tinha mandado evacuar a cidade. O exército de Almançor incendiou a cidade e o templo pré-românico, mas respeitarou o sepulcro do apóstolo, um gesto que é comparado ao de Átila ao poupar Roma. A conservação do sepulcro permitiu que o Caminho de Santiago continuasse apesar da destruição do santuário, que voltou a ser reconstruído cerca do ano 1000 pelo bispo Pedro de Mezonzo. 2

Códice Calixtino original.
Foto: www.google.com
 O templo do século X também se mostrou pequeno para atender às numerosas peregrinações que acorriam à cidade. Sob o impulso do rei Afonso VI, o Bravo e do bispo Diego Páez em 1075 foram iniciadas as obras para construir uma grande catedral românica, a cargo dos mestres de obras Bernardo, o Velho, que concebeu e desenhou o projeto, e do seu ajudante Galperinus Robertus. Segundo Códice Calixtino  3 , trabalharam na construção 50 equipes de obras   4 .  Em 1101, o Mestre Estêvão abandonou a cidade de Compostela, deixando completas as capelas do deambulatório e iniciadas as obras da fachada das Pratarias. A partir daí os trabalhos prosseguiram com regularidade; em 1111 foram terminadas as obras no cruzeiro, em 1122 (de acordo com o mesmo Códice Calixtino) foi colocada a última pedra.  Diego Gelmires teve um papel crucial não só na construção da catedral como na intensa atividade de construção vivida na cidade nessa época. Tendo sido nomeado bispo em 1100, em 1120 tornou-se o primeiro arcebispo de Compostela. E apesar de tantos períodos com as obras paradas, a grande quantidade de esmolas conseguidas possibilitou que a igreja fosse consagrada em 1128.

No ano de 1140 deu-se início a mais uma fase de construção, quando já estavam construídos e cobertos seis tramos das naves. Nesta fase as obras estiveram a cargo do Mestre Mateus, que respeitou a organização arquitetônica precedente e que em 1168 começou a construir o Pórtico da Glória. Não obstante as obras terem prosseguido por boa parte do século XIII, a catedral foi consagrada definitivamente em abril de 1211. Nos motivos esculpidos nos capitéis da nave central é notória a evolução dos mestres da obra: nos primeiros — a contar do cruzeiro — aparecem parelhas de animais fantásticos e reais (águias, leões, pombas e sereias) e, ocasionalmente, figuras humanas; os quatro últimos tramos já são claramente obra da oficina de Mateus: folhas lisas ou espiraladas, por vezes com figuras humanas assomando-se entre elas, monstros, leões, dragões e lobos.

A catedral de Santiago, vista a partir da praça do Obradoiro.
Fonte: www.google.com
Durante os séculos XVII e XVIII foram levados a cabo transformações profundas na catedral, tendo sido introduzidos elementos barroco, tanto no interior como no exterior da basílica. As obras começaram a partir de 1643, quando Filipe IV outorga uma renda anual para financiar as obras na cabeceira. Em 1649 chega à cidade José Vega y Verdugo, que introduz verdadeiramente o barroco na catedral. Em 1657 o arquiteto madrileno Pedro de la Torre inicia a remodelação da capela maior.

Praça do Obradoiro com edificação do Hospital dos Reis Católicos.
Fonte: www.google.com
 Como era de se esperar para uma edificação com história tão movimentada, a população que atualmente vive na cidade teve como origem a própria catedral, seja por questões religiosas ou pela necessidade de mão de obra para a construção do edifício, o que desperta grande interesse para estudarmos mais a fundo a igreja maior. Mesmo a praça que hoje é o lugar principal de chegada dos peregrinos e onde se observa melhor a fachada da igreja, denominada Praça do Obradoiro, teve seus limites preservados porque era ali nesta esplanada onde se localizavam os canteiros de obras no período de sua construção. E, em se tratando de uma obra arquitetônica grandiosa que teve inicio na Idade Média, é fácil acreditar que agrupamentos de ordens místicas eram atuantes nestes canteiros, como provam a existência de alegorias mitológicas na decoração da catedral ou os códigos inseridos em pilares ou blocos de pedras do interior da Igreja. No próximo artigo trataremos mais da arquitetura mística da Catedral analisando textos do Códice Calixtino e imagens da arquitetura do lugar.
  
Notas:

1 - BRAVO Lozano & Raurich. El Camino de Santiago inolvidable, Editora Everest. Leon, Espanha. 1999, p. 5


3 - O Liber Sancti Jacobi, também referido como Codex Calixtinus ou Códice Calixtino (Santiago de Compostela, Arquivo da Catedral, s.n.), é um manuscrito iluminado de meados do século XII.  É conhecido do grande público pelo seu livro V, que se constitui no mais antigo guia para os peregrinos que faziam o Caminho rumo a Santiago de Compostela, incluindo conselhos, descrições do percurso e das obras no arte nele existentes, assim como usos e costumes das populações que viviam ao longo da rota. Os demais livros do códice contêm sermões, narrativas de milagres e textos litúrgicos diversos relacionados com o apóstolo São Tiago.

4 - M. C. Díaz y Díaz, El Códice Calixtino de la Catedral de Santiago. Estudio Codicológico y de contenido, Santiago de Compostela, Espanha. 1988.




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