“(...) Decorada com mais de cem
imagens esculpidas grande parte delas em
mármore branco polido,
a parte das peças puramente ornamentadas, aos
raios de Sol refletiam esplendorosamente
a glória daquele Apóstolo que ali
aparecia contemplando o inenarrável de seu excelso Mestre.
E os peregrinos ao
admirarem tanta grandiosidade e tanta beleza,
proclamavam cheios de emoção e entusiasmo,
como fazia o Autor do Livro V do Códice Calixtino, que verdadeiramente era
gloriosa
a Tumba do Evangelizador da Espanha.” 1
A Catedral de Santiago foi
modificada em numerosas ocasiões desde a sua construção, com diversas obras e
ampliações que foram alterando substancialmente a planta em cruz latina
original. Atualmente é um edifício complexo, do qual dificilmente o visitante consegue
ter uma percepção clara da sua arquitetura e distribuição dos diversos espaços
e estruturas. 2
Planta baixa original da Catedral. Fonte: www.google.com |
O “Guia do Peregrino” escrito por
Aymeric Picaud entre 1135 e 1140, integrado no Códice Calixtino, constitui a
primeira descrição detalhada do que era a cidade de Santiago e a sua catedral
no século XII, dedicando a este tema todo o capítulo IX. Picaud descreve as
dimensões da basílica: 53 "alturas de homem" (em latim: status
hominis) de comprimento por 39 de largura e 14 de altura interior. 3 Descreve detalhadamente as três portas
principais: a setentrional ou Francígena, a meridional, que posteriormente
ficaria conhecida como Porta das Pratarias e a porta ocidental. Desta última há
muito menos detalhes, mas menciona a imagem e cenas da Transfiguração. O certo
é que quando visitou a catedral, ainda não estavam terminados os últimos tramos
da nave nem podia ainda existir tal porta, pelo que se supõe que o que
descrevia era o projeto que nunca chegou a ser realizado e que Mateus
redesenhou anos depois. 4
Fachada do Obradoiro, atualmente com predominância da tipologia barroca Fonte: www.google.com |
Na atualidade, cada uma das
fachadas forma com as respectivas praças conjuntos urbanísticos magníficos.
Fachada do Obradoiro é o nome dado à fachada ocidental da catedral, pela qual
se entra na nave principal. Dá para a praça homônima, a mais emblemática da
cidade, em tipologia barroca. O seu nome é uma alusão ao estaleiro ou oficina
(obradoiro) de canteiros que funcionava na praça durante a construção da
catedral. Para proteger o Pórtico da
Glória da deterioração que sofria devido às inclemências meteorológicas, esta
fachada e as suas torres sofreram várias reformas desde o século XVI, preservando
o projeto românico concluído pelo Mestre Mateus em 1.188. Em 1738 o cabido
decidiu construir a atual fachada barroca devido “à ruína de que padecia o
espelho (rosácea) e à falta que faz a torre pela igualdade com a outra”, para o
que contratou Fernando de Casas Novoa, discípulo de Domingo de Andrade. A
fachada desenhada por aquele arquiteto dispõe de grandes janelas envidraçadas
que permitem iluminar o interior e situa-se entre as torres das Campás (à
direita ou ao sul) e da Carraca (à esquerda ou ao norte). Para a sua construção
começou por derrubar-se o que então restava da fachada medieval. Neste novo
projeto, designou-se a meio do corpo central a figura de Santiago Apóstolo e
num nível mais abaixo os seus dois discípulos Atanásio e Teodoro, todos
vestidos de peregrinos. Também encontram-se uma urna, representando o sepulcro
encontrado no século IX e a estrela que representa as luzes avistadas pelo
eremita Pelágio, de acordo com a lenda sobre o local, entre anjos e nuvens. Na
torre da direita (sul) está Maria Salomé, mãe de Santiago, e na torre da
esquerda o seu pai Zebedeu. Sobre a balaustrada da parte esquerda pode ver-se
Santa Susana e São João e na da direita Santa Bárbara e Santiago Menor.
Palacio Farnese e sua escada de acesso. Fonte: www.google.com |
Detalhe da escada de acesso à catedral a partir da Praça do Obradoiro Fonte: www.vigoenfoto.com |
A porta da catedral está num
nível bastante mais elevado do que o da Praça do Obradoiro, pelo que para subir
até à entrada há uma escadaria, construída em 1606 por Ginés Martínez em estilo
renascentista, inspirada na que Giacomo Vignola desenhou para o Palácio Farnese
em Roma, em forma de losango, com dois lanços que rodeiam a entrada para a
antiga cripta românica do Mestre Mateus, denominada popularmente "Catedral
Velha".Entre o plano da fachada do Obradoiro e o antigo portal românico (o
Pórtico da Glória) há um nártex coberto. Esta fachada tornou-se um símbolo da
catedral e da cidade de Santiago de Compostela, o que é atestado, por exemplo,
pelo fato de aparecer no reverso das moedas de um, dois e cinco cêntimos de
euro de Espanha.
Entrada Porta das Pratarias. |
Pormenor da porta da Fachada das Pratarias Fonte: www.google.com |
A porta de Acibechería é também
barroca; foi iniciada por Lucas Ferro Caaveiro e Clemente Fernández Sarela e
terminada por Lois Monteagudo. A única fachada medieval que ainda subsiste,
ainda que também com modificações, é a das Pratarias, construída pelo Mestre
Estevo, que é a fachada do lado sul do cruzeiro da catedral. Embora tenha sido edificada entre 1103 e
1117, durante os séculos posteriores foram-lhe sendo adicionados outros
elementos provenientes de outras partes da catedral, como o Pórtico do Paraíso
ou o Coro Pétreo. Outras modificações
substanciais foram a construção da Torre do Relógio no século XIV e da Fachada
do Tesouro. A Praça das Pratarias é delimitada pela catedral e pelo seu
claustro em dois dos seus lados, tendo em frente à ela a Casa do Cabido. Ao que
tudo indica, o nome das Pratarias deve-se ao fato da praça ser o local da
cidade onde se concentravam as oficinas e lojas de ourives de prata.
Tímpano da porta: Cristo sendo tentado pelo demônio. |
Tímpano da porta: a vida e paixão de Cristo. Fonte: www.google.com |
Consta de duas portas de entrada
com arquivoltas e tímpanos intensamente decorados. As arquivoltas assentam
sobre onze colunas adossadas; a central e a dos extremos são de mármore branco
e as restantes são de granito. Na do centro aparecem as figuras de doze
profetas e nas laterais estão representados os apóstolos. Sobre os tímpanos há um
grande friso que está separado do corpo superior por uma franja sustentada por
cachorros grotescos; neste nível encontram-se duas janelas decoradas com
arquivoltas românicas. No friso central
encontra-se a figura de Cristo, com várias outras personagens e diversas cenas;
à sua direita há seis pequenas figuras de meninos cantores que pertenceram ao
Coro Pétreo do Mestre Mateus e que foram colocados neste pórtico em finais do
século XIX. A disposição original dos
elementos iconográficos foi desvirtuada desde que no século XVIII foram
introduzidas numerosas imagens da antiga fachada da Acibechería então
desmantelada. Num medalhão central aparece o Pai Eterno (ou Transfiguração de
Jesus) com as mãos abertas e sobre os arcos do extradorso figuram quatro anjos
com trombetas que anunciam o Juízo Final.
No tímpano da porta esquerda
aparece Cristo tentado por um grupo de demônios. À direita aparece uma mulher
meio despida com uma caveira nas mãos, que pode ser Eva ou a mulher adúltera,
sentada sobre dois leões. Nas jambas estão representados Santo André e Moisés.
No contraforte esquerdo o rei bíblico David sentado no seu trono com as pernas
cruzadas, translúcidas através do fino tecido da sua roupa, e tocando uma
viola, personifica o triunfo sobre o mal e é uma obra destacada do românico,
esculpida pelo Mestre Estevo, conhecido como o Mestre de Pratarias. No mesmo contraforte há também uma imagem da
criação de Adão e de um Cristo bendizendo. Muitas destas figuras procedem da
fachada românica norte, ou do Paraíso, substituída pela atual fachada da
Acibechería e foram colocadas no século XVIII.
No tímpano da porta direita há
várias cenas da Paixão de Cristo e da Adoração dos Reis Magos. Numa das jambas
pode ver-se a inscrição que comemora a colocação da primeira pedra: ERA / IC /
XVI / V IDUS / JULLII. A inscrição segue o calendário romano e segundo a
contagem da chamada Era Hispânica corresponde a 11 de julho de 1078. Uma
imagem, não identificada, com uma raposa que devora uma lebre e outra, frente a
esta, com uma mulher mal vestida com um animal no colo, procedem de outro
lugar. Na parede da Torre Berenguela, há outras imagens que representam a
criação de Eva, Cristo num trono e o sacrifício de Isaac.
Acesso principal da Porta Santa. Fonte: acervo pessoal. |
Ainda há uma última porta
emblemática, que vale ser destacada tanto pela beleza arquitetônica quanto pela
importância religiosa. A porta santa localiza-se em uma das fachadas da
catedral, sendo aberta apenas em anos jacobeus ou compostelanos, 5 vindo a abrir novamente em 2021. Foi construída,
ou aberta, no século XVII perfurando a velha parede românica de forma a criar
um acesso direto desde a Praça até à cripta, estando a porta ao fundo. É este o
"Pórtico de Perdón": é como um painel de pedra que recebe o
peregrino, mas não a porta em si que o faz. É chamada popularmente "Puerta
de los veintisiete sabios" (Porta dos Vinte e Sete Sábios). Estes vinte e
sete sábios são Santiago, os seus discípulos e os vinte e quatro anciães do
Apocalipse. A cerimônia de abertura da porta é seguida de uma procissão
religiosa conduzida pelo Arcebispo e pelas autoridades políticas, por vezes, o
Rei, que se aproxima da porta e pedem ao Apóstolo licença para entrar. O ritual
consiste em bater à porta com um grande martelo de prata, que permanece no
tesouro da catedral, três vezes, perguntando: "Podem os pecadores entrar
na Casa de Deus?". A porta atual
foi oferecida por um grupo de empresários e negociantes de Compostela, feita em
bronze, substituindo a parede de pedras que bloqueava o acesso e que era
demolida todos os Anos Santos. Como agora se tem uma nova porta, não se sabe
como isso vai afetará o velho ritual. O que se sabe é que a decisão de mudar o
velho muro por estas suntuosas portas ficou a dever-se a razões estéticas.
Porta Santa vista a partir do interior da catedral. Fonte: turgalicia.com |
Notas:
1. FERREIRO, Antonio López.
Historia de la Santa A. M. Iglesia de Compostela. Tomo III. Libro Segundo. Los
Tres Primeros Siglos de La Iglesia Compostelana. Parte Segunda. Pág 112. Santiago,
Espanha, 1900.
2. De acordo com o Códice
Calixtino, o projeto completo contempla 9
naves, sendo 6 pequenas e 3 grandes, 9 torres, 29 colunas, 63 janelas, 3
pórticos principais e 7 pequenos.
3. Ou seja, respectivamente, 90,
66 e 24 metros
segundo a conclusão de alguns estudiosos, ou mais especificamente 97, 65 e 22 metros segundo a
correção do historiador Lopez Ferreiro. Segundo o arquiteto norte-americano
Kenneth John Conant (1894–1984), cuja tese de doutoramento se intitulou “The
Early Architectural History of the Cathedral of Santiago de Compostela”
("A história arquitetural primitiva da Catedral de Santiago de
Compostela"), esta medida de um status hominis equivale a 1,70 m . Para mais
informações a respeito do uso da escala humana em edificações de cunho
religioso, ver a tag COVADO
4. “A ambigüidade com que o
Códice Calixtino descreve uma suposta fachada ocidental da catedral anterior à
obra de Mateus, assim como a ausência de vestígios arqueológicos ou
arquitetônicos dela, levam a concluir que, ainda que seja possível que
existisse um projeto, e mesmo uma oficina onde se trabalhasse em peças
destinadas a essa porta, a catedral não foi terminada até à construção da
fachada exterior do Pórtico da Glória.” Yzquierdo Peiró, 2011.
http://sant-iagodecompostela.blogspot.com