"Fui um homem casado, pai de família, numa boa situação de fortuna, lascivo e mundano.
A tudo isso renunciei de bom grado, a fim de poder honrar a Deus, servir ao bem público
e exaltar nossa santa fé. Aprendi árabe; fui várias vezes pregar entre os sarracenos.
Detido, encarcerado e flagelado pela fé, trabalhei cinco anos para comover
os chefes da Igreja e os príncipes cristãos em favor do bem público.
Agora estou velho, agora estou pobre, mas não mudei de idéia e perseverarei na mesma,
se o Senhor me permitir, até a morte." 1
O pensamento e a obra de Ramón Llull nos permitem analisar a visão cristã da cavalaria peninsular diretamente envolvida no contato direto com o "outro": o muçulmano. Ao inserir-se numa proposta missionária de conversão - e portanto muito mais próximo do "inimigo" - Llull trouxe importantes contribuições à visão cristã da cavalaria. Sua obra Libro del Orden de Caballería foi fruto desse envolvimento. Embora contra as cruzadas desde o começo - era considerado um pacifista - Ramón Llull no fim de sua vida aceitou a luta armada contra o infiel como uma forma de impor o diálogo.
Nasceu entre os anos 1232 e 1235, em Maiorca. De família nobre, foi pajem e cavaleiro de Jaime I, o Conquistador, e senescal e mordomo de seu filho, o infante D. Jaime de Maiorca. Casou-se antes de 1257 com Blanca Picany, tendo dois filhos, Domingos e Madalena. Ao contrário do que se costuma pensar, não existe nenhuma prova documental que Llull tenha aderido a qualquer ordem religiosa. Na verdade, Llull foi um pensador leigo. Contudo, a iconografia posterior o franciscanizou.
Ramon Llull. fonte: nibiryukov.narod.ru |
A forte presença moura e judia em Maiorca contribuiu para o sentido missionário de sua obra. Em 1265, aos trinta anos, quatro aparições de Jesus crucificado levaram-no a dedicar-se à conversão de todos os infiéis. Até então, sua vida era voltada para a corte, as poesias trovadorescas e a vida mundana: "Apesar da ajuda que recebi dos anjos e das pregações dos religiosos (...) cheguei a ser o pior dos homens e o maior pecador desta cidade e de todas as redondezas." Ramón Llull nasceu quando Maiorca estava sendo conquistada aos mouros por Jaime I. A presença da Ordem do Hospital em Maiorca - auxiliou a campanha de Reconquista cristã, recebendo como prêmio a repartição da ilha - provavelmente influenciou o espírito de conversão expansionista do pensamento de Llull.
Seus esforços resultaram na fundação, por Jaime II, de um colégio em Miramar, em 1276, onde os missionários cristãos podiam enfronhar-se nos mistérios da língua árabe. Não se sabe a duração do Colégio de Miramar. Especialistas especulam que a crise espiritual sofrida pelo filósofo em 1293 foi devida ao fechamento do Colégio. De qualquer forma, a partir de então, aos sessenta anos, Llull fez viagens à África e Ásia para pregar (esteve na Berberia, Tartária, Abissínia, Chipre e Rodes - sede internacional da Ordem do Hospital desde 1308).
Pregou ainda na Universidade de Paris e no Concílio de Vienne (no Delphinado, na França) de 1311 - 1312, onde foi decidida a supressão da Ordem do Templo. Morreu em 1315, apedrejado até a morte por muçulmanos em Bougie (norte da África) . Mais tarde, difundiu-se uma lenda que dizia que teria expirado numa barca de mercadores catalães que o haviam pegado em Túnis para reconduzi-lo à terra natal. A lenda também propagou sua imagem como a de um alquimista e mago, o que não se confirma com o estudo de suas obras.
Ramón Llull foi um escritor prolífico. Sobreviveram quase trezentas de suas obras; poesia, misticismo, filosofia e teologia. Boa parte de seus escritos do final de sua vida inserem-se dentro da perspectiva da ideologia cruzadística cristã (Liber de fine, 1305 e Liber de acquisitione terrae sanctae, 1309) e suas conexões com o maravilhoso (Libre des meravelles - ca. 1288) . No entanto, a filosofia luliana num todo é realista, não-aristotélica (por esse motivo aproveitada no Renascimento) e progressista - por exemplo, Llull foi um pioneiro na tentativa de organizar um sistema de arbitragem nas discussões internacionais. Em sua época, alguns filósofos (Duns Scott, Guilherme de Ockham e os averroístas) tentavam libertar-se dos estreitos vínculos da metafísica e da teologia. Llull colocou não só a lógica, mas toda sua filosofia novamente a serviço da religião.
Nota:
1. LLULL, Ramon. Disputatio clerici et Raymundi phantastici,
in artigo de Ricardo da Costa, 1977, UFES, Porto, Portugal.
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